Mentiras Sinceras me interessam

Esta mensagem inicial do blog explica, se é que é preciso, o título do mesmo. Todos sabem que é parte da letra de uma música de Cazuza (abaixo) (...) "mentiras sinceras me interessam". Tem outra frase que poderia ser usada. É de uma amiga minha (não me perguntem de quem); "Mente, mas mente gostoso
". Claro que o blog não será usado para difundir mentiras, mas os leitores talvez se identifiquem com a dose de ilusão necessária e até fundamental que coloco em tudo o que faço e escrevo. Utopia, ainda é, uma droga lícita. Mas use com moderação.

"Entre a sinceridade ferina e a falsidade carinhosa, prefiro a última. No jogo impreciso do amor, vale mais a intenção forjada do que a fúria da razão. Portanto, entre a espada crua da verdade, mentiras sinceras me interessam"


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domingo, 6 de março de 2011

Danycross - Sem Retorno

        Conto criado entre o anos de 1999 e 2004. 


Danycross  –  Sem retorno

Capítulo I  -  O Dia Seguinte... consciência?!

          A carteira estava em cima da geladeira, com as chaves. A porta estava fechada, fazia isto automaticamente. Ainda bem.
          Virou-se, rolou na cama,  mirou a porta do quarto, "flutuou" até ela (não sentia o próprio corpo) – não aguentou. Voltou e largou-se na cama revirada...desmaiara novamente.

          Outra vez despertou. Havia passado horas, para ela pareciam minutos. O teto já não girava tanto, sentia agora, e como sentia, o corpo todo...doendo. A cabeça latejava, as pernas e os braços tremiam o estômago queimava. Não olhou para o chão. As marcas na blusa,  no lençol e na cama já denunciavam o que haveria lá. "Chamei o Hugo" pensou quase sorrindo.

          O cigarro, sim um cigarro. Aquele maço aberto do chão estava arruinado... “o Hugo”. Mais sempre havia outro e mais outro, enfim...fumava muito. Pegou um cigarro, acendeu, tragou uma, duas, três vezes. Agora sim. Fumava antes de tudo, depois de tudo e durante quase tudo. Não havia fumado em casa. Não havia bitucas no chão. Os lençóis, colchão, sua roupa e seu rosto não estavam queimados. Ainda bem.

          Começava lentamente a recobrar a consciência. Estava sozinha. Seu filho, Lucas, havia ficado com uma vizinha,  não tinha mais ninguém na casa, tinha passado a noite só...menos mal.


      Levantou-se de uma só vez,  agora sim estava quase no comando de suas ações. Caminhou em direção a porta ainda preguiçosa e tonta, porém já com o balanço sinuoso, sua característica natural. Livrou-se da blusa, estava só com ela, não usava calcinha... nunca.   Entrou no banheiro. 

          O espelho que ela não ousava encarar  era a única testemunha de seu corpo agora nú. Pernas longas e roliças, cintura fina, seios de médios para grandes,  soltos mas firmes. Dany era realmente uma mulher linda.

      Deixava a água morna cair sobre o corpo como se fossem chibatadas. Os perfumes do banho limpavam seu corpo dos cheiros da noite mas não livravam sua alma dos fantasmas de sempre.
         A memória começou a clarear com a água. Quase desligou de repente. Pegou a toalha e atirou-se molhada no sofá. Não aguentava ficar em pé.

       As lembranças da noite a esta altura já invadiam sua mente. Tinha dançado, fumado muito, e acima de tudo, bebido demais. Mas com quem estivera? Lembrava de vários rostos. Flashes, beijos e até amassos...ousados...mas, nem tanto. Nenhum rosto, nenhum corpo especial.

         Lembrava de um carro, música alta, cigarro, bebida, um casal na frente e outro casal atrás, ao seu lado. Deixaram-na no portão de casa, sozinha, de novo...como sempre. 

         - Vamos largar a Dany em casa! – Gritou uma menina que ela não lembra quem era.
       - Sim, ela está nocauteada como sempre! – Completou um rapaz que, também, ela não tinha a menor idéia de quem seria mas, pelo comentário, parecia conhecê-la bem.

      O dia amanhecia no bairro Viamar,  Jardim Tarumã na velha Viamão de guerra. Era Domingo mas não se ouvia o som dos motores no Autódromo.  Não haveria corrida...bom... sem barulho.

        Ao sorver o primeiro gole do café preto, forte e doce, acendeu o terceiro ou quinto cigarro. Ah! o café. Era a primeira coisa boa do dia. Fumava enquanto estendia a cama, limpava o chão, recolhia as roupas, enfim, colocava a casa em ordem. Era uma mulher prática, já havia feito aquilo muitas vezes, e em pior estado. Era fácil arrumar a casa.  Já a vida,  a essa altura...impossível.

    As lembranças daquela noite ainda eram confusas. Pensava enquanto agora bebia vários copos de água gelada. Tinha náuseas. A cabeça ia explodir. Engoliu duas aspirinas. Pensava em pegar o filho Lucas. Péssima idéia. Ele não deveria vê-la naquele estado.

       Estava com fome. Nem lembrava a última vez que comera algo. Revirou a geladeira e encontrou um resto de macarrão com salsicha.
       - Aha! O manjar dos deuses – ironizou.
      Colocou catchup e mostarda e começou a comer...frio mesmo. 
   Viu uma lata de cerveja na porta da geladeira e não resistiu.      Tomou-a toda, de uma vez só.  “Esta merda parece água mineral” , pensou.
    Olhou demoradamente para a lata, já quase vazia, gelada em sua mão. Acendeu o décimo cigarro...achava, e abriu outra cerveja. 

    Serviu-a, agora sim,  em um copo; transparente, fino e alto...como ela gostava. Serviu com bastante espuma. Deixava o colarinho amadurecer bem devagar equanto olhava para o líquido amarelo-brilhante, como ouro líquido com pequenos cristais de gelo, como diamantes... fazendo o copo suar.
     
      Enquanto olhava para a cerveja pensava em quantas vezes já havia feito isto e como tudo em sua vida sempre começava assim. Seus prazeres, seus problemas e até seu filho tinha começado assim. Será que teria valido a pena? Seu filho tinha valido muito a pena claro, mas e o resto. O pai de Lucas tinha abandonado-a antes mesmo dele nascer. Ficara grávida e sozinha aos quatorze anos. 

       Sim sozinha. Sua mãe havia abandonado seu pai com ela e a irmã 3 anos mais nova. Ela uma criança; 7 ou 8 anos não lembrava. Seu pai se casara novamente com uma mulher bem mais jovem que ele: tinha 42 anos e a nova mulher 26. Ela e a madrasta não se suportavam e aos 11 anos ela saiu de casa.

     - Vá embora! Está louca pra se soltar mesmo! – Esbravejou a madastra.
    - Fica tranqüila. Vou deixar você tomar conta de tudo o que é meu. – Ironizou a ainda menina.

   Foi morar com uma irmã de seu pai. Uma mulher sombria, amargurada. Recalcada, não havia se casado...enfim uma pessoa triste.  Sua transição da infância para a adolescência foi sem carinho, sem orientação... sem ilusão. Seu pai, um engenheiro civil não tão bem sucedido mandava-lhe algum dinheiro, às vezes. Era dominado pela mulher, já tinha outra filha, outra familia...enfim outra vida.  

       Ela sentia-se só como nunca naquele dia. Via que sua vida havia sido vazia apesar das muitas vezes que se entregou de...corpo e, quase nunca de alma.




Capítulo II  -  O Dia seguinte - Gilberto e Miguel.


    Sua primeira paixão foi Gilberto, o "Pai do Lucas", ainda magoada, era assim que ela o chamava. Ele tinha 25 anos, ela 14. Não sabia nada da vida... queria até ser modelo!! Ele a seduziu. 
      Tinha uma motocicleta e a pegava na escola. Apesar da pouca idade ela já era encantadora. Loira, 1,72m, olhos azuis, cabelos quase na cintura, lisos...brilhantes como fios de ouro. Boca grande, mas não exagerada, lábios grossos, dentes perfeitos. Sorria um sorriso aberto, solto, quase debochado. Sorria com o rosto inteiro, aliás ... sorria com o corpo inteiro. 

     Provocava inveja nas colegas, nas mães das colegas, nas professoras. Provocava intenções não reveladas nos colegas, nos pais dos colegas...nos professores. 

       Ela era virgem, Gilberto foi seu primeiro homem. Transaram algumas vezes e ela nunca gostou daquilo. Quando ela engravidou ele foi embora. Teve que enfrentar a família, preconceito humilhação...enfim. Achou que nunca mais ia se apaixonar. Seu filho nasceu e ela teve que voltar a morar com o pai. Trabalhou de doméstica em sua própria casa.

      - Eu não disse. Volta agora com um filho nos braços para nós criarmos. Onde está aquele orgulho? – Sentenciou a madrasta. Ela ouvia tudo calada.

      Com dezessete, anos já terminando o “científico” (ensino médio), estava estagiando em um órgão público, achou que era a hora, mais uma vez, de alçar vôo. Desta vez sozinha. 
        Com a ajuda do pai e contra a vontade de sua madrasta, alugou um pequeno apartamento de quarto e sala na  periferia da Grande Porto Alegre. Para ser exato em Viamão, bairro Tarumã. Mobiliou-o com o clássico/básico: fogão, geladeira, mesa com quatro banquinhos, cama de casal,  guarda-roupas de solteira,  televisão,  sofá e...só.
       Já morava sozinha, com seu filho quando chamou a atenção de um superior no órgão em que trabalhava. Miguel.
     Miguel era homem importante na repartição. Ela encantou-se primeiramente pelo que ele representava. A estabilidade em pessoa. Alto, forte, impecavelmente vestido. Decidido, decisivo para o seu trabalho.
   Aprendeu muita coisa com ele. Viveu uma grande paixão. Aprendeu a gozar até. Mas Miguel era casado e jamais deixaria a mulher, era frio e pragmático, quase cruel. Mesmo assim ela o adorava.

    - Quer mais atenção arrume um namorado. – disse Miguel, certa vez

    Derrubou seu mundo de ilusões,  mais uma vez. Ela  sofreu, chorou muito mais aprendeu...e obedeceu.

     Descobriu que podia ter o homem que quisesse. Teve todos que desejou e que precisou mas a paixão por Miguel seguia firme e forte.

    As vezes se entregava, sofria, mas logo arrumava outro e outro. Assim levava sua vida. Decidiu que não mais se apaixonaria e simplesmente curtiria sua vida da melhor maneira possível.



Capítulo II  -  O Dia Seguinte...Marcos


      Tudo corria bem em sua vida. Pelo menos era o que ela achava. Em uma recepção do trabalho em um hotel de luxo conheceu Marcos. Ele era supervisor de seviços e parecia inatingível para ela.        De descendência japonesa era disciplinado e muito sério. Passava por ela e cumprimentava-a cordialmente.

     - Bom dia senhorita Daniele (chamava-a pelo nome todo e ela detestava).

    Olhava-a e simplesmente sorria. Fazia uma cortezia com a cabeça e não falava nada. Ela se desmanchava, se excitava. Ele era diferente de todos os homens que babavam por ela. Como seria sair com ele?

  Conspiração do acaso. No salão de festas onde seriam apresentados importantes clientes da empresa, entre conversas, drinks  ela trocava olhares com o supervisor. 
    Num determinado momento ambos dividiram a mesma saída do salão, que dava para um corredor. Quase se encostaram, seguiram em frente. Ele estava na direita e iria para a esquerda, ela ao contrário. Se cruzaram e se encararam a menos de quatro dedos de distância. 

    Ela sentia sua respiração no rosto. Chiclete de menta...loção de barba. Seus olhos batiam na altura da boca dele. Ela era grande...quase desproporcional. Quando depois de alguns segundos que pareciam horas lembrou de levantar os olhos deparou-se com os dele. Negros, profundos...pensou que iria desmaiar

   Quando recobrou os sentidos, havia passado uma fração de seundo, estava beijando-o intensamente, ferozmente desesperadamente. Era o começo de uma grande paixão.

     Naquela mesma noite saíram juntos. Não esperaram chegar a lugar nenhum. Fizeram amor no carro, na estrada. Sem pudor desde o início. Foi um sexo calado, suado...quase sofrido. Foram para a casa dela. Ele também era casado. “Minha sina” pensou ela. Foi a primeira vez de muitas madrugadas que passariam na cama.

     Já sentia-se bem melhor com as lembranças de Marcos. Foi a geladeira e abriu outra cerveja. Era a terceira. Conferiu o estoque...mais de dez. Colocou algumas no congelador.

   A ceva já descia redonda. Gostava da saudade de Marcos. Lembrava de como ele era gentil, carinhoso, atencioso. Levava-a para dançar...dançava muito bem. Ao contrário de Miguel, Marcos se apaixonou de verdade por ela. Mas era casado. Casado. Ela não acreditava ou não admitia que podia ser amada por ele.
   Marcos se desdobrava em carinhos e atenção a ela, ao filho... enfim também apaixonado, confuso não sabia muito bem o que esperar daquela tempestuosa relação.

- Daniele me dá uma chance. Fica só comigo. Talvez a gente consiga ser feliz. Estou criando coragem para decidir a minha situação em casa. Quase implorava Marcos.

- Eu já vi este filme. Vocês são todos iguais. Respondia cética Dany.


Capìtulo III –  O dia seguinte - O Arrependimento


     Acordou das recordações com o celular tocando. Nem olhou no visor, desligou-o. Não queria falar com ninguém.

    Nem bem terminou a cerveja que bebia e abriu outra. Engoliu a metade de uma vez só. A cerveja já descia direto, Não sentia novamente que estava bebendo demais. De novo.

    Entristeceu ao lembrar que havia estragado seu relacionamento com Marcos. Tratou-o como todos os outros. Ele era diferente. Só agora ela percebia.

     Curtiu-o enquato era novidade e depois arrumou outro amante. Ele não aceitou, brigou. Escreveu-lhe querendo explicações. Não as teve. Ela era assim mesmo. Ele por fim entendeu e passaram a sair juntos eventualmente. Ele realmente a amava, mas já não era a mesma coisa.

    Dany viu o erro que cometera. Sempre que ela precisava era Marcos quem a consolava. Sempre em qualquer situação. Ele era o amigo-amante que nunca a deixava só.

     Muitas vezes tirava-a do fundo do poço. Fundo mesmo. Sempre apoiava-a em seus projetos, incentivava, apostava nela.

     Podia Ter dado certo com ele e ela nem tentou. Agora o chamava e nem ele vinha. Finalmente ela havia conseguido. Tinha sido abandonada por todos. Outra cerveja, sim. Outra e mais outra.


   O tempo havia passado depressa. Estava escuro novamente lá fora. Que horas seriam...o que importava? Sua vida havia sido em vão.  Não tinha ninguém. Ninguém setia sua falta.

    A lembrança de Marcos agora lhe era amarga como a cerveja que já lhe provocava azia. Sua garganta queimava, sua cabeça outra vez girava mas ela não pararia mais de beber.

    Começou a chorar compulsivamente. As lágrimas caiam no copo e se misturavam com a cerveja. Tinha nauseas e soluços...começara a passar mal...de novo.

    Sentiu uma tristeza profunda e uma dor imensa no peito, na alma. Entendeu que sua vida continuava vazia. Pensou em seus amores, seus amigos, seus pais. Não pensou no seu filho.

   Pegou um vidro de calmantes que sabia estavam na gaveta esquerda da cama e tomou-o todo...agora nada mais importava.

     Sua vida passava rapidamente ante seus olhos. Sua mãe, que ela pouco conhecera parecia sorrir-lhe, como sempre fez. Viu o pai baixando os olhos mais uma vez...como sempre. A madrasta condenava-lhe com um olhar frio e desaprovador.

     Miguel, sim Miguel, talvez seu único e grande amor olhava-a com indiferença. Para ele sempre foi “tanto faz”.

       Então viu Marcos. Este sim. Tinha a cara de perplexidade. Seus olhos gritavam:.

      - Por que Daniele, Por que? Podíamos Ter tentado. Eu largaria tudo por você! Eu te amei como não pensava que pudesse amar ainda.


      Na  sua derradeira agonia Dany via Marcos, de novo Marcos, estendendo-lhe a mão. Ela agora tentava pegar sua mão também. Era tarde. A imagem ia ficando embaçada e distante. Não ouvia mais som nenhum... não sentia mais nada. Tudo em sua volta foi desmoronando...escurecendo...escurecendo.



Epílogo – O Dia seguinte – O preço da Paz.


     No seu sepultamento todos estavam presentes. O pai, a madrasta, sua irmã mais nova, sua meia-irmã. Seus amigos. Seus maiores amores: Gilberto, Miguel e, claro, ainda que mais afastado de todos...Marcos.

    A vizinha, que havia ficado com Lucas naquela noite ainda tentava explicar como encontrou-a no dia seguinte. Deitada na cama com a mão esticada agarrada ao lençol. Tentava entender também a atitude de  Lucas que, apenas aproximou-se, parou perto do corpo da mãe e beijou-a dizendo:

       - Agora durma em paz, mãe.

    Ela agora parecia mesmo estar dormindo. Seu rosto perfeito parecia estar em sono tranquilo. Sua boca ainda brilhava e sua pele dava a impressão de estar mollhada fina chuva que caía.

     Todos comentavam que Dany havia vivido intensamente. Tinha feito tudo o que queria, como queria e quando queria... Será mesmo? pensava Marcos.

     Ele se aproximou do caixão. Óculos escuros sobretudo cinza em cima do terno azul-marinho. Colocou uma rosa amarela, loira como ela sobre o peito da sua grande paixão. Então virou-se, sem falar com ninguém e dirigiu-se a saída. Não havia chegado à porta quando Lucas agarrou-o pela mão e saiu com ele. Ambos apenas choravam calados.  Haviam perdido um grande amor.


by Nô Vidal



Conto criado entre o anos de 1999 e 2004. Que momento!



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